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O corpo na migração forçada e o lugar onde colocamos o estranho


Recentemente, fui convidada a fazer um podcast para o canal da Sociedade Portuguesa de Psicossomática, o 'O Credo na Boca'. Ali, em cada podcast, uma reflexão, uma discussão, uma provocação sobre temas tão humanos. Eu falo de um deles, tão humano que existe desde que existe a humanidade: as migrações. O podcast está disponível pelo link https://soundcloud.com/user-572529419/com-o-credo-na-boca-ep-47-julia-bartsch?ref=whatsapp&p=i&c=1&utm_source=whatsapp&utm_medium=message&utm_campaign=social_sharing


Há tantas formas de ser de fora: o forasteiro, estrangeiro, turista, visitante... exilado, imigrante, expatriado... refugiado.

Quando o corpo sofre, a alma padece. E o que falar do corpo que tenta escapar de sofrer o seu aniquilamento e se depara com mais violência?

Migrar é romper. E o que se vê forçado a fazê-lo sequer pode elaborar despedidas ou idealizar a nova terra. Ele simplesmente precisa partir. Esse corpo que foge também será o que denuncia seu dono como o estranho àquele lugar. O rosto, a cor da pele, o sotaque.

Nesse podcast, com um público majoritariamente português, minha pronúncia já denunciou minha origem brasileira. A depender de Fernando Pessoa, nossa pátria é a mesma língua. Mas falo desde meu país, onde não sou, portanto, estrangeira. Sei, no entanto, que soo estrangeira, e sou estrangeira a alguém em outro lugar.

Convido o público, entretanto, a pensar o que significa deparar-se com um outro de origem diferente. Por que ele é diferente de mim? E principalmente, o que faz com que Eu o torne diferente?

Desse encontro, temos alguém que veio de outro lugar, para encontrar-se num lugar que entendemos ser nosso. Tenha esse alguém vindo num avião ou atravessado o Mediterrâneo num barco de borracha, ele traz em sua bagagem uma história. História essa que, muitas vezes, é deixada de lado para voltar a colocar essa pessoa à deriva já em terra.

Ao tentarmos entender uma saída tão abrupta, um percurso cheio de medos e uma chegada onde o indivíduo não consegue ser acolhido, podemos considerar a experiência do trauma. Sigmund Freud define trauma da seguinte maneira: ““Os traumas são experiências sobre o próprio corpo do indivíduo ou percepções sensórias, principalmente de algo visto ou ouvido, isto é, experiências ou impressões”. Precisaremos, portanto, observar como esse corpo se coloca e onde ele é colocado. Os psicanalistas uruguaios Maden em Marcelo Viñar acrescentam: “No exílio, ninguém o conhece, ninguém o reconhece. Aquele que era eu não existe mais”. Sua história e tudo o que fez desse sujeito fica, assim, perdida. Resta-lhe esse corpo que o denuncia simplesmente como alguém que não é dali. (3min)

Aquele que deixa seu local de origem para sobreviver, se vê forçado a deixar o que lhe é familiar. Não bastassem as violências sofridas, este sujeito deixa o que dele faz parte para viver o estranhamento surgido do encontro com o estrangeiro. Pergunta-se como ele pode manter-se relativamente inteiro quando parece haver pedaços de si deixados para trás. Esses pedaços, ou referencias, de alguma forma, conseguem ser revividos no resgate da própria cultura. O psicanalista francês René Kaës nos diz que “A cultura (como parte desta referência) sustenta o processo da estruturação psíquica ao introduzir o sujeito à ordem da diferença (...). A cultura é o que nos é transmitido, o que é adquirido e incorporado ou introjetado no laço primário”. Assim, vemos imigrantes manifestando suas culturas na dança, na comida, na língua, nas relações. Viver a própria cultura é uma forma de assegurar a própria existência. E transmiti-la, de assegurar sua continuidade. Freud, e sua obra “O mal estar da civilização”, também traduzida por “O mal estar na Cultura”, nos lembra que um dos principais esforços da civilização é reunir pessoas em grandes unidades. Esse modo de vida em comum é o mais antigo, o único que existe na infância, dificultando assim a aquisição plena de outros modos culturais adquiridos depois.

Na ausência de membros do grupo de pertencimento inicial deste imigrante, surge um sofrimento psíquico envolto por uma maior perda de si. Dá-se, desta maneira, a experiência da ruptura, a experiencia de não existir. Soma-se a isso o encontro com um outro, o da terra de acolhida, que não só lhe é estranho, como também aponta o quanto esse imigrante é, ele mesmo, um estranho.

Esse encontro com a alteridade lhe reafirma que ele não é dali. E porquê a chegada de um estrangeiro em nossas terras faz com que o coloquemos neste lugar? Da mesma maneira com que esse estrangeiro se constituiu dentro de códigos intrapsíquicos que definem “o que é meu, o que é do outro”, esse mecanismo também serve para cada um de nós. O estrangeiro/estranho pode, então, ser visto como o que é diferente, o que ameaça meu espaço, o que não deveria estar ali, o que não pertence. O encontro entre esses dois sujeitos provocará algo em ambos. Essa alteridade dirá quem faz parte daquela cultura e quem é excluído.

Entretanto, essa é uma possibilidade primária que não exclui outras maneiras de aproximação. O encontro com o outro também pode abrir possibilidades de abertura. Os movimentos migratórios fazem parte da história da humanidade. Cada um de nós temos, em alguma medida, influencia de outras culturas. Seja por nossos antepassados, seja pela presença de outros em nossa terra. Até mesmo o termo ‘nossa terra’ poderia ser questionado. Sequer precisamos sair de nossas casas, se as imagens de TV adentram nas salas e nos quartos com outras maneiras de viver.

Podemos entender até aqui que a cultura faz parte da constituição do sujeito, seja ele um estrangeiro, seja ele local. Enquanto a problemática da diferença não receber uma resposta adequada, ela segue como fantasma nessa relação. Representar a própria cultura é uma tentativa de falar de si. Ela fala quem eu sou e como consigo existir. Reconhecer que não é apenas o outro que deve se adaptar, mas que nós, como representantes desse lugar de recepção, podemos reconhecer que também fomos formados com códigos culturais que ditam nossas percepções, valores e preconceitos no que diz respeito a como lidamos com o que deles diferem.

É possível reduzir o incômodo e o sofrimento advindo desse encontro para ambos, ao considerarmos o caminho da interculturalidade. A interculturalidade tem como princípio não haver uma cultura superior à outra, mas sim reconhecer que as diferenças podem proporcionar o enriquecimento do Eu. Desta forma, o acolhimento é possível a despeito das diferenças. Elas não se apagam, mas são, desta forma respeitadas. Quando algo nos incomoda, é preciso observar o que isso diz sobre nós. Esse incômodo é sentido pelo outro, que, por sua vez, também tenta se proteger. E no desamparo, sente o sofrimento em seu corpo, na alma que assim padece. E o encontro com o outro, diferente, nos desafia a esse exercício, nem sempre fácil, de tornar esse outro mais próximo e semelhante a nós do que poderíamos imaginar.

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